domingo, 30 de setembro de 2007

RAÇA IRRACIONAL

Ao ouvir seu nome, Wilson abaixou o jornal e percebeu que quem lhe chamara era seu cão, sentado à sua frente e encarando-o.
- Más noticias, hein? – disse o animal, com ar de pesar.
Wilson sempre estranhara o comportamento do cão, que apesar dos maus tratos dado pelo dono devido à falta de recursos, sempre aparentava ser o mais amigável possível. Mas ouvir o animal falar não era algo que ele compreendia. Tapou a imagem do cão de seu campo de visão com o jornal e voltou a lê-lo. Jonas, o cão, subiu no sofá ao lado de seu dono, e insistiu.
- Não adianta me ignorar. Você sabe que um dia ou outro isso iria acabar acontecendo.
O homem resolveu ceder, e disse:
- Em trinta e sete anos os únicos animais que eu ouvi falar foram papagaios. Cães não falam. Por que diabos você resolveu me atormentar?
- Besteira. – respondeu Jonas – Eu sempre falei. Você que não ouvia.
- E qual motivo eu tenho para te ouvir agora?
Jonas encarou Wilson, e balançou a cabeça em direção à TV.
- Veja. – disse o cão.
O noticiário mostrava uma reportagem sobre a maior indústria da cidade. Essa indústria fabricava móveis e devido a um pesado investimento tecnológico, estava demitindo todos os funcionários e mudando-se para outra cidade, onde inauguraria uma fábrica muito maior e mais bem equipada. Cerca de um terço da população da cidade dependia daquela indústria diretamente. Outro terço dependia dela indiretamente, e o terço restante eram funcionários públicos.
A economia era precária. A falta de saneamento afetava noventa por cento da cidade. Nas escolas, apesar dos esforços dos professores em dar aula, faltava material didático, e as epidemias eram freqüentes devido ao acúmulo de crianças nas apertadas salas de aula. Nos hospitais faltavam médicos e remédios. Os pacientes que agüentavam esperar para serem atendidos voltavam para a casa sem resolver seus problemas e acabavam recorrendo às receitas naturais. Os que não agüentavam esperar morriam. O futuro da cidade acabava na fila do hospital, à espera de socorro.
O cão continuou.
- Veja vocês. Olhe o estado em que se encontram. Durante anos e anos essa cidade sobreviveu à custa de uma única fábrica. Fábrica essa a quem vocês dedicam a vida inteira para enriquecer os bolsos de seus donos, enquanto vocês não tem nem móveis decentes em suas casas, se é que dá para chamar isso de casa. E agora vocês são chutados de lá. Estão pisando em vocês como se pisa numa barata para matá-la. Só irão parar quando ouvirem o barulho do estalo de seus esqueletos. Então terão a certeza que vocês estarão mortos.
- Cale a boca, seu animal! Durante toda sua vida eu te dei abrigo, comida, nunca te faltou nada. Agora você vem falar essas coisas. Acha que não sei? Acha que não queria ter uma vida melhor? Você não sabe o que eu passo, não tem o direito de falar...
- É isso! – exclamou Jonas, em êxtase – Você sempre me deu tudo o que eu preciso e sempre lhe fui fiel. Ao contrário de seus chefes. Eles não querem saber da fidelidade de vocês. Eles não ligam. Vocês estão sendo tratados pior do que nós, reles cachorros. E é isso que te faz me ouvir. Não há mais diferença entre nós. Somos iguais.
Wilson levantou e pegou sua muleta. Um acidente o fizera perder o pé, e desde então sua perna tem apodrecido aos poucos, envolta em trapos imundos, exalando um fedor que já era comum na cidade. Saiu pelas ruas em direção à fábrica. No caminho encontrava outros companheiros de trabalho com seus respectivos cães. Alguns cachorros sem donos remexiam montes de lixos que se acumulavam por toda parte. E ao passar por eles Wilson recebia gritos de incentivos dos animais.
Aos poucos os funcionários, um a um, juntavam-se ao grupo que protestava na porta da empresa. Wilson passou por um caxote de madeira onde viu alguns ratos comentando toda aquela situação, felizes por aquilo não estar acontecendo com eles. Os homens gritavam palavras de protestos e formavam coro para reclamar. Wilson espremeu-se na multidão para chegar até o portão. Lá viu Jonas, que olhava um papel com algumas palavras.
- O que está escrito? – perguntou o animal.
“Encerramos nossas atividades por motivos de força maior.”
- Besteira. – disse, ao terminar de ler.
- Olhe eles. – disse Jonas, apontando a cabeça em direção ao grupo, que gritava – Para os donos, isso é só um latido.
- Não. – respondeu Wilson – Esse é o som que eles precisavam ouvir. Agora eles sabem que estamos mortos.
Ambos ficaram em silêncio, vendo a multidão.
- Você estava certo, Jonas. Mataram-nos igual a baratas.


Esse conto foi inscrito num concurso, o que não o torna melhor. Como provavelmente ele não vai ganhar, então colocá-lo aqui é a única forma para que vocês possam ler. Até mais, e obrigado pelos peixes. Ricardo Schneider, Ponta Grossa, 30 de setembro de dois mil e sete.

Um comentário:

Anônimo disse...

De nada (responderam os adestradores do Maravilhos Underwater Sea). Aos educados Golfinhos.