E o sossego se perdeu em cacos e freada. Um acidente. Todavia, mais um. E embora o tempo esteja em grande fase. E embora a chuva ainda caia e molhe a calçada. E embora a fantasia repita a realidade. Morri mais uma vez. Sempre em vão. Nunca à toa, mas sempre por nada.
Um ferido. É isso que restou de mim. Apenas os ferimentos de mais uma morte mal morrida. Uma morte cretina, sem vista para o mar, sem rosas e sem bossa nova. Mais uma, todavia. A noite turva surpreende. Eu, com motivos, fugi. Fugi de mim. Tinha todos os motivos. E, a contragosto, lancei minha cadeira de rodas de encontro ao trem que iria me levar embora. Uma morte rápida e barulhenta. Com freada e cacos voando. Com a esperança do paraíso perdido.
- e hoje, vai fazer o que?
- não sei. O que tem pra fazer?
- nada.
- então, o que não tem pra fazer?
Um urubu lambendo os beiços. A carniça apodrecida em meio à multidão. Uma mulher linda. Outra não. Um sujeito com roupa de antigamente. Outro não. Um cigarro apagado nas nádegas da garota de programa. Outro não. Dois minutos de conversa fiada. Outros dois para lembrar o nome de uma rua. Uma mulher com corpo em forma de copo americano. Eu tinha todos os motivos para morrer. Mas, e agora?
- aqui todo mundo faz tudo e ninguém faz nada.
Tá, tá. Mas como era mesmo aquela música? Aquela que tocava todos os dias na rádio? Uma que todos cantavam? Ela ficava na cabeça, não saia. Colava. Lembra?
Eu tinha motivos. Mas não agora.
- e aí, comeu?
Uma coisa aconteceu duas vezes na minha vida. A primeira e a última. E embora a mulher com corpo de copo americano não volte, eu me lembro dela. Uma coisa que eu não conhecia era o amor. Não conheço ainda. Não o amor delas. O meu eu sei até onde é incapaz. Mas foi então que eu tive motivos. E fui embora, de encontro à morte. Sem vista para o mar, mas rápida e barulhenta. Uma cadeira de rodas abandonada no pátio. Quebrada. Como minha vida. Como minha solidão.
- mini-hang-loooooooose!!!!!
O que eu quero dizer é que não adianta. Por pior que sejamos, sempre há algo terrível para acontecer. Como quando aquela minha ‘tia-esqueleto’ resolveu ter um filho. Mais um. No auge dos seus quarenta e tantos anos. Como ela era incapaz, pegou um que tava por aí dando sopa. E depois tatuou uma maquiagem em sua cara. Na cara dela, não na da criança. Então se deu conta que ela estava muito velha pra cuidar dela, da criança. Principalmente quando começaram os cocozinhos amarelados, as paredes com pegadas e as primeiras palavras. Ou seja, ela achou que o bebe era um cãozinho abandonado que você ‘pega pra cuidar’, e se ele der muito trabalho, você dá praquele sobrinho ‘meio estranho que vive sozinho’. Daí que ela percebeu que estava velha, apesar do esqueleto maquiado, e não ia conseguir dar conta do moleque. E achou por bem ir às gôndolas do Pão de Açúcar pegar uma ‘criança um pouco mais velha’ pra dar essa conta. Outra que tava por aí dando sopa.
Acontece que é assim. Sempre tem algo pior por vir. Porque depois o esqueleto-tatuado disse que tudo isso era em nome de Deus. Legal, Deus deve estar se revirando no túmulo. É sempre assim. A morte chega para quem menos deveria. Eu tinha motivos. Mas, agora?
- ontem eu saí dirigindo sozinho pela rua e resolvi atropelar cachorros.
Acontece que eu erro, porra! Nem sempre tudo é uma maravilha. Por pior que seja. E eu acertei uma cadela por engano. Uma no cio, me parece. Ela nem reclamou muito. Não latiu alto. Não tinha motivos. Tudo sempre tem a sua primeira vez, inclusive a morte. A morte dos outros. A minha já foi. Faz tempo, inclusive.
- Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou Modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para o seu país.
O que eu quero dizer é que eu não lembro direito quando foi, mas sei que uma vez eu fui uma criança. Daquelas gordinhas, que brincavam sem parar e achavam graça em poodles. E talvez eu até sinta vontade de fazer aquilo tudo outra vez, e esteja involuntariamente sendo um babaca por completo. Mas fazer o que? Leite em pó não adianta, bicho! Eu tinha motivos. Mas não queria. Não agora.
- Decadence avec elegance.
E eu lancei minha cadeirinha de rodas ao encontro daquele trem. Um beijo francês, diga-se de passagem. Mas não há paraíso, não há inferno. Só esse eterno purgatório burocrático. A morte não cala, não sossega, não nos deixa descansar. Não há paz. Nunca houve. A morte também é uma forma de colisão. E de vez em quando a gente ta guiando, de vez em quando a gente ta sendo guiado. Não importa. Não adianta se preocupar, nada vai dar certo.
Ricardo Schneider, apesar de tudo.
segunda-feira, 14 de abril de 2008
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AMAZING
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